O Fardo (Mary Westmacott)

Título Original: The Burden
Lançamento: 1956   
Editora: L&PM Pocket 
Gênero: Romance, drama


"-Baldy sabia. Por que achamos que sabemos 
o que é melhor para os outros?"




       Bom dia, caros leitores, tudo certo com vocês?  Hoje terminei de ler o meu primeiro dos seis romances não policiais que Agatha Christie escreveu sob o pseudônimo de Mary Westmacott. Ironicamente, esse é o último livro da aventura de Agatha pelo mundo da psicologia e das complexas relações humanas. Naturalmente, a autora têm uma ótima desenvoltura pelo gênero, já que sempre aborda o aspecto psicológico nas suas obras oficiais, chegando a utilizar esta como a principal arma de Hercule Poirot e Jane Marple. 
        O livro é uma trama que logo nas primeiras páginas se enreda pelos desejos secretos dos seres humanos, aqueles que, em perfeito estado, jamais admitimos; mas, que vez ou outra, acabam escapando do nosso controle e contrariando nossa vontade. Fazendo-se uma observação paralela, podemos observar um "recado" da autora: Deus carrega o fardo por nós. Dele ninguém oculta nada, nossas mais cruéis vontades chegam a Ele de qualquer forma. E, às vezes, Ele acaba cedendo a elas.

    Voltando a nossa trama, que inclui ainda o desprezo e ódio de uma criança por sua irmã recém-nascida, que passa a se tornar o mais puro amor obsessivo, e permanece, de sua forma, até a eternidade. Um personagem que pessoalmente me chamou atenção, foi o Baldy Baldock. Achei uma ótima construção de Agatha, um sopro de bondade e alma quase divinas, inteligência e senso crítico, no meio da confusão caracteristicamente humana. Baldy dá os melhores conselhos, é praticamente o pilar da história, que acontece conforme ele planeja. É um homem de grande sabedoria, um solteirão que vive em meio a pilhas de livros velhos da biblioteca de sua casa. É também, o único homem que se interessa, que consegue enxergar através do véu de normalidade e complacência da pequena Laura, e vê quem realmente ela pode se tornar. Acho que a intenção de Agatha ao escrever esse livro não foi criar uma boa história, algo extraordinário ou engenhoso, mas sim mostrar a natureza humana. Ela quis que nos identificássemos com os personagens, utilizou-se de algo espantosamente comum há anos atrás: a indiferença de pais com seu segundo filho, e o amor idealizado pelo primogênito. Isso é tão natural, que a própria Laura, o segundo filho da história, acredita ser merecedora da falta de afeto, interesse, atenção e amor por parte de todos que a rodeiam. Ela se conforma com isso, como se tal fosse seu destino. Agatha consegue expor tão nitidamente as nossas falhas, nossos defeitos, nossa humanidade, que em alguns trechos do livro chego a me assustar com a completa falta de escrúpulos de todos os personagens (excetuando Baldy). Me assusto mais ainda quando me identifico com algumas delas, me assusto quando confirmo a veracidade estarrecedora de uma frase dita por Dr. House, que para mim, resume o livro: "As pessoas podem fazer coisas boas, mas seus instintos não são bons." O bom leitor saberá tirar cada pedacinho desse drama, saberá identificar cada personalidade envolvida, saberá interpretar cada ação, por menor que seja, saberá compreender cada inocente silêncio, saberá a exatidão de cada escolha e as consequências delas; que por sinal, foi onde os pais de Laura e Shirley preferiram ficar cegos. 

A grande reflexão que este livro deixa é: Até que ponto somos capazes de carregar o fardo de sermos humanos? O próprio fato de sermos humanos nos torna imperfeitos, e, portanto, incapazes de alcançar a felicidade plena. Incapazes de conhecer a verdade, de entender a nossa própria essência, de saber quem somos; essa é a única certeza que temos a respeito de nós mesmos. Não podemos ter certeza de nada, e a certeza desse fato é desconcertante. Todos os dias, repudiamos nossos instintos ruins, nosso medo, nossa angústia, nossa própria vida, que vai se tornando insustentável. A maioria das pessoas não tem consciência disso, e Agatha propõe com este livro um "espelho" para refletir a nós mesmos e nossa natureza. Ela explicita em Laura a inveja, o ciúme, a indiferença, o ódio, a tristeza e a transformação de tais sentimentos em um amor desconcertante; e, será que alguém pode culpá-la por seu desejo de querer ver a irmã morta? O que provocou esse desejo? Será que se tivesse recebido afeto de seus pais, babás, amigos e instrutores, esse desejo não teria surgido em sua mente? Talvez. Será que nenhum de nós nunca desejou, secreta e inconscientemente, a morte de alguém que amamos ou odiamos, por puro egoísmo? E, o que fez Laura, depois de ter implorado tanto, mudar de ideia subitamente naquele incêndio? Teria mesmo sido amor o que ela sentiu? Ou uma necessidade desesperada de pertencer a alguém? O prazer, sentido em uma fração de segundo, ao saber que alguém nesse mundo, dependia dela para continuar vivo? Ou teria sido uma estranha compaixão, de saber como é ser odiada e rejeitada?
Leitores, esses e muitos outros questionamentos são feitos em "O Fardo". Recomendo o livro, principalmente pra quem gosta de psicologia. É uma excelente construção da natureza humana. Para finalizar, transcrevo aqui uma passagem interessante da obra. Obrigada pela leitura, e boa semana!

"[...] Atribuímos nossos padrões humanos de valores, ou de justiça e injustiça, a Deus. Essa é a nossa dificuldade. Não temos, nem podemos ter, a mínima ideia do que Deus realmente quer do homem, exceto que parece bastante provável que Ele queira que o homem se torne algo que ele pode se tornar, e ainda não se tornou."



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